quinta-feira, 26 de outubro de 2017

FÁBULAS DE ESOPO - Adaptação Nicéas Romeo Zanchett

QUEM FOI ESOPO 
Esopo foi um fabulista grego; segundo a tradição é o suposto autor de uma coleção de fábulas, algumas das quais datam dos antigos tempos dos egípcios. Muitas das notícias que a ele se referem, (ditos, descrições, dados biográficos, etc.), são meras invenções das últimas épocas da Idade Média. A atual coleção é atribuída, por muitos estudiosos, ao monge Planudo, (século XIV). Ao longo da história foram feitas adaptações por muitos escritores da literatura universal, sendo o mais famoso La Fonfaine que se tornou conhecido como grande fabulista. No Brasil o mais importante foi Monteiro Lobato. 


A CIGARRA E A FORMIGA 
Uma formiga, no inverno, punha ao sol todo o trigo que tinha apanhado durante o verão. Uma cigarra vendo as suas mínimas provisões, aproximou-se pediu que lhe dese um pouco daquele trigo; ao que a formiga respondeu:
- " Minha amiga, que fizeste tu no decorrer do longo verão enquanto eu trabalhava?"
- Ora, andava cantando pleos campos e bosques", respondeu a cigarra, por isso não tive tempo para arranjar provisões".
" _ Pois se cantavas no verão, agora aproveita seu tempo no inverno e dança."
E entrando novamente com o trigo no seu buraco, riu-se da imprevidência da cigarra.
Lição
Devemos aproveitar o tempo bom e trabalhar para que não venhamos a passar por necessidades quando o inverso chegar. 

*           *           *

O LOBO E O CABRITO
Certo dia, um lobo viu um cabritinho que corria por uns campos, longe do seu dono e lançou-se em sua perseguição. O cabritinho viu-o e começou a correr quanto pode, mas sentindo-se quase alcançado pelo lobo, parou, voltou-se para o seu perseguidor e disse-lhe: 
- " Senhor lobo, vejo que não de nada adianta correr e que vai me devorar; antes de morrer só lhe peço um favor para alegrar os meus últimos instantes tocando sua gaita para eu bailar". 
O logo, com toa a sua arrogância, não deu a menor importância àquele pedido estranho, mas tocou sua gaita e fez o cabritinho dançar alegremente, indo e vindo pelo campo. A música atraiu uns cães pastores de uma fazendo próxima os quais ao verem o lobo o puseram precipitada fuga. 
Depois de longa carreira, quando este se viu salvo, pensou tristemente: 
" _ É o resultado de ter me metido onde não era chamado; devi-a tê-lo morto e não por-me a tocar a gaita. 
Lição 
É melhor não nos metermos com aquilo que não nos diz respeito. 

*          *           *

AS ABELHAS E O FRASCO DE MEL 
Um dia um homem pendurou numa árvore do seu jardim um frasco com mel. Em volta voavam muitas abelhas que queriam entrar no frasco para provarem o seu conteúdo. Mas uma vez dentro ficaram pegadas ao mel e pouquíssimas conseguiram fugir, morrendo as outras, em pouco tempo. 
Lição 
Se adquirirmos maus hábitos dificilmente nos livraremos deles. 

*          *           *

O VELHO CÃO DE CAÇA
Um velho cão de caça que tinha trabalhado muito durante longos anos, estava velho, cansado e doente. Mas mesmo assim seu dono insistia em levá-lo durante as caçadas.
Por uma ocasião duma batida de caça aos veados da montanha, ele foi o primeiro a alcançar um deles; agarrou-o por uma de suas patas, mas os dentes não resistiram o suficiente para segurar aquele veado até a chegada de seu dono, e este escapou-lhe.
Muito raivoso, o dono começou a bater-lhe com um chicote. O pobre cão, desesperado disse-lhe tristemente: 
- " Senhor, não bata no seu mais antigo servo; eu de boa vontade o serviria com antes, mas faltam-me as forças. Se não sou agora de grande utilidade, lembre-se dos serviços que outrora lhe prestei". 
Lição 
Não devemos desprezar os velhos pela sua fraqueza e falta de energia. Lembremo-nos dos bons trabalhos que executaram quando tinham forças para isso. 

*           *           * 

O RATO DA CIDADE E DO CAMPO 
Em certa ocasião um rato que morava na cidade foi visitar um amigo seu que morava no campo, e lá foi muito bem recebido pelo amigo; dentro da toca o anfitrião lhe ofereceu pedaços de pão, favas e cevada que juntos comeram com a maior alegria. 
Para retribuir tanta gentileza, o rato da cidade convidou seu amigo a fazer uma visita aos seus domínios.Este prontamente atendeu ao convite.
 Quando se encontravam juntos numa bela dispensa dum palácio da cidade disse: " - Meu amigo poder comer o que te apetecer pois as provisões daqui são abundantes e variadas; além disso, escolho o que há de melhor. 
Estavam saboreando as mais apetitosas carnes quando de repente abriu-se a porta da dispensa e entrou p cozinheiro; os ratos assustaram-se e cada um fugiu para seu lado; o rato da da cidade já conhecia bem todos os esconderijos, mas o do campo nada sabia e ficou assutado e perdido. 
Assim que o cozinheiro fechou a dispensa e desapareceu, saíram de novo juntos. O rato da cidade disse: 
" _ Vem cá amigo, aproveita e vamos comer; olha que abundantes víveres. 
" - Realmente é tudo muito bom", respondeu o ratinho do campo, "- mas dize-me, este perigo costuma acontecer com frequência?"
" - Sim", respondeu o outro, "isto acontece a todo o momento e por isso mesmo não lhe devemos dar importância. 
" - Ah!..." respondeu o do campo, "então isto acontece todos os dias?  e acrescentou: é bem verdade que vives num meio de grande opulência, mas eu prefiro a tranquilidade da  minha pobreza que o alvoroço da tua abundância". 
Lição  
A felicidade no meio da riqueza, muitas vezes aparente, em geral é cheia de amarguras e cuidados. Na maioria das vezes são mais felizes os pobres que os ricos. 

*          *           * 

A GALINHA E O TOPÁZIO 
Uma certa galinha revolvia um monturo e encontrou uma pedra preciosa e lhe disse: 
- Como te encontras tu aqui nesta sujeira? Se algum ourives te tivesse encontrado ficaria muito contente e restituir-te ia o brilho; mas para mim de nada me serve e nem te aprecio. 
Lição
Os tolos e ignorantes não apreciam a ciência e a sabedoria, e por isso nunca deixarão de ser tolos e ignorantes.


*           *            * 

AS RÃS E OS TOUROS
Um certo dia uma rã estava à borda d'um lago contemplando dois touros que brigavam numa planície de pastagem.
- Ola que grande luta", disse a uma companheira. Que será feito de nós se eles vieram aqui? - 
- É melhor não nos assustarmos, respondeu a outra; não temos nada a ver com as lutas desse animais. Não são da nossa classe. 
- É verdade, disse a primeira, mas julgo que aquele que for vencido virá procurar refúgio por estas pastagens e poderá nos comer se não estivermos muito atentas. Como vês não é sem razão que me preocupa aquela luta.
Lição 
Quando os fortes lutam os fracos sofrem as consequências.

*           *           *

A DEUSA E A ÁRVORE
Um dia os deuses lembraram-se de cada um colher uma árvore para protegerem-na e guardá-la.
Júpiter escolheu o carvalho, Vênus o mirto, Hércules o álamo, Minerva - a deusa da sabedoria - reservou para si a oliveira e disse: 
- Eu prefiro esta árvore porque produz uma grande quantidade de frutos úteis.
- Tens razão, respondeu Júpiter,  e vejo que é razoável que honrem a tua sabedoria. Com efeito se nas nossas ações não encontrarmos um benefício é um disparate fazê-las apenas por vangloria.
Lição
Façamos com que as nossas ações sejam prudentes e úteis. 


*          *          * 

O LEÃO APAIXONADO 
Um certo leão apaixonou-se pela filha d'um lavrador, e desejando casar-se com ela, foi ter com o pai da moça e pediu-a com todas as formalidades. Como era de se esperar o bom homem negou-lhe aquela estranha proposta; mas, ao mesmo tempo, sentiu-se orgulhoso por ter tido a filha pedida em casamento por um rei.
Quanto à fera, não se conformou e logo pô-se a ranger os dentes e a ameaçar a todos; o lavrador então achou mais prudente apoiar os estranhos desejos do leão, evitando assim o seu desespero, dizendo-lhe: 
- Senhor Leão, não vejo nenhum inconveniente em lhe ceder minha filha em casamento, mas é preciso que antes me deixe arrancar suas unhas e dentes para que minha filha não viva aterrorizada ao seu lado. 
O leão estava tão apaixonado e não viu nada de mais com aquela exigência de um pai.
Assim que o lavrador percebeu que a fera já não mais lhe fazia medo apossou-se de uma cabo de enxada e o pôs para correr a pauladas. 
Lição 
A paixão pode ser um sentimento perigoso. Aquele que de alguma maneira se entrega ao seu inimigo terá sempre que sofrer a sorte dos vencidos. 


*           *           * 
O VEADO E O BOI 
Um veado que estava fugindo d'uns caçadores acabou entrando num estábulo e pediu ao boi que lá se encontrava que o deixasse se esconder ali. O boi não se opôs a este pedido, mas disse: 
- Mesmo aqui você não está muito seguro porque daqui à pouco virão os criados e o fazendeiro. 
- Contudo, disse o veado, não me denunciando me sentirei seguro. 
Dai a pouco entraram os caçadores e não repararam no veado; entrou também um mateiro e tão pouco o viu, mas, logo chegou o fazendeiro e começou a inspecionar as manjedouras e todos os cantos para evitar descuidos dos criados, e descobriu debaixo do feno as hastes do veado, e imediatamente deu ordem para matá-lo.
Lição
Não se deve confiar tudo aos outros; ninguém olha melhor pelas suas coisas que o verdadeiro interessado. 

*           *           * 

A GATA, A ÁGUIA  E A PORCA 
No alto dum carvalho, uma águia tinha o seu ninho. Logo abaixo, num buraco no meio do tronco vivia uma gata com seus filhotes e em baixo, ao pé da árvore, habitava uma porca com os seus leitõezinhos. 
Um dia a gata subiu até o ninho da águia e disse-lhe:
- Minha amiga e vizinha, está em grande perigo; esta asquerosa porca que vive lá embaixo não faz outra coisa senão roer as raízes da nossa árvore para fazê-la cair e devorar os seus filhinhos. Faça o que quizer; eu, pela minha parte, ficarei em casa vigiando essa odiosa fera.
Dito isto, a gata desapareceu deixando a águia muito assustada e foi ter com a porca. 
- Senhora vizinha, disse-lhe ela em tom delicado, creio e espero que hoje não pretendas sair.
- Porque não?, perguntou a porca. 
- Oh!, tornou a gata com muita esperteza, ouvi a, vizinha do alto, protendo uns leitõezinhos aos seus filhotes tão logo tu os tenha deixados sozinhos durante seus passeios; como somos amigas vim logo lhe  prevenir. Não posso demorar-me, pois, de repente, essa malvada águia pode roubar algum dos meus gatinhos. 
Depois dessa fofoca a gata só saia à noite para procurar comida, de modo que tanto a águia como a porca pensaram que ela estava sempre cuidando dos seus filhos e assim não ousaram sair de casa, e seus  filhinhos acabaram por morrer de fome; o que facilitou seu trabalho alimentar seus gatinhos. 
Lição
Nunca devemos ouvir fofocas e nem confiar em mentirosos. 

*           *           *
O LEÃO E OS QUATRO BOIS 
Quatro bois que sempre pastavam num lindo prado, juraram eterna amizade e quando um leão os atacava, defendiam-se juntos e  tão bem nunca nenhum deles morria. 
Depois de muitas investidas, o leão compreendeu que de nada adiantava tentar enquanto estivessem unidos e por isso tratou de armar uma intriga entre eles. Aproximou-se amigavelmente de cada um deles e disse, de forma separada e até secreta, que os outros dois o aborreciam quando vinham lhe falar mal dele. Desta maneira criou-se uma desconfiança entre os três amigos e tudo era motivo de suspeita entre eles. Não demorou muito e a aliança foi finalmente desfeita. 
Dessa forma o leão pode atacar e devorar cada um individualmente. Quando chegou a vez do último boi morrer, exclamou: 
- Só nós é que somos culpados pela nossa morte por ter dado crédito às falsas palavras do leão. Mas já não havia mais nada a fazer. 
Lição
A união faz a força. "Um por todos e todos por um, como faziam os Três Mosqueteiros.

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A FORMIGA, A POMBA E O CAÇADOR
Uma formiga caiu na água, e teria morrido afogada se uma  bondosa pomba não tivesse lhe lançado um ramo de árvore para usá-la como bia e navegar até à margem. 
Eis que de repente chega um caçador e prepara sua arma para atirar na pomba; a formiga,vendo isto e o perigo que corria a sua benfeitora, pressa o passo e vai dar uma forte picada no pé do caçador, obrigando-o a voltar a cara e deixar cair a arma. Com o ruído que esta fez, a pomba foi avisada do perigo que corria e fugiu. 
Lição
Amor com amor se paga. 

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O HOMEM E A SERPENTE 
Movido pelo seu bom coração,um nobre camponês recolheu na sua casa uma cobra, cuidando dela e sustentando-a durante os frios e os rigores do inverno. Quando chegou o verão e o réptil reanimou-se com o calor, tentando dar cabo do bondoso homem, que ao ver tanta ingratidão a expulsou de casa.  
Lição 
Os ingratos só sabem pagar com o mal. 

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O CÃO E O PEDAÇO DE CARNE
Um cão, que passava à borda dum rio, levava na boca um pedaço de carne, viu-o refletir na água e pareceu-lhe  que era um pedaço maior e por isso deixou cair o que tinha na boca para apanhar o outro ficando assim sem a verdadeira e sem a falsa. 
Lição 
Ninguém se contenta com a sua sorte, e a ambição faz a desgraça de muitos. 

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O BURRO E OS CAMINHANTES
Uns homens que andavam perdidos encontraram, por acaso, um burro. Ambos o queriam para si e começaram a discutir qual dos dois havia de ficar com ele, entretanto, enquanto os dois discutiam o burro fugiu deixando-os em iguais circunstâncias. 
Lição 
O egoísmo faz com quem muitos não aproveitem boas oportunidades.

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O CÃO INVEJOSO
Um cão muito invejoso foi deitar numa manjedoura cheia de feno,  e quando os bois vieram para o estábulo não os deixou comer. Um dos bois aproximou-se para tirar um pouco de feno, mas o cão furioso, começou a ladrar e a mostrar os dentes.
"-Animal invejoso", disse-lhe o boi, "como tu és mau! Nem ao menos deixas que me aproveite daquilo que o nosso dono destina para nós e que a ti n]ão te serve para coisa alguma""
Lição
A inveja e o egoísmo criam inimizades gratuitamente. Nada custa deixar que outros aproveitem d'aquilo que não nos falta. 

*          *          *
  
A COTOVIA E SEUS FILHOTES 
Uma cotovia tinha feito o seu ninho numa linda seara. Uma de primavera, antes de sair à procura de comida para seus filhotes, recomendou-lhes  manterem-se sempre alertas e que escutassem tudo o que o lavrador, dono daqueles campos, dissesse, para lhe contarem quando ela voltasse. 
E assim sempre foi. Um dia, no seu regresso,os pequenos contaram-lhe que o lavrador tinha passado por ali com seu filho, e que ambos haviam combinado chamar os vizinhos para os ajudarem a ceifar o trigo.
- Então, disse a cotovia mãe, ainda não há perigo. 
No dia seguinte as cotoviazinhas contaram-lhe que o lavrador tinha passado de novo por ali com o mesmo filho, e que ia dizendo a este que fosse chamar os primos para o ajudarem na colheita.
Quando ouviu isto, a cotovia mãe pensou que o perigo ainda não era iminente.
Ao terceiro dia os passarinhos disseram á mãe que tinham ouvido o lavrador dizer para seu filo: 
- "Amanhã nós mesmo vamos fazer a colheita.
- Ah, sim?, interrogou a prudente cotovia; então é chegada a hora de fugirmos d'aqui. Eu bem sabia que nem os vizinhos nem os parentes do lavrador o ajudariam na tarefa; mas se é ele mesmo que vai ceifar, então não temos outra escolha senão mudar-mo-nos para outro campo. 
Lição
Quem quer faz, quem não quer manda. 

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A RAPOSA E O LEÃO
Uma raposa encontrou pela primeira vez um leão, e o seu aspecto feroz e os terríveis rugidos aterrorizaram-na de tal maneira que caiu por terra a tremer e esteve a ponto de morrer de medo. 
Numa outra ocasião encontrou-se pela segunda vez com o temível rei dos animais e o seu espanto já não foi tão grande e até o esteve admirando a distância.
Quando pela terceira vez se encontraram, a raposa já tinha perdido todo o medo e, aproximando-se tranquilamente do leão, começou uma animada conversa com ele, como se fossem velhos amigos.
Lição 
A convivência muitas vezes leva ao desrespeito. 

*          *          * 

O BURRO E JÚPITER
Um granjeiro possuía um burro que já estava cansado de levar quotidianamente hortaliças para o mercado; Um dia pediu ajuda a Júpiter que lhe concedesse outro dono. 
Júpiter escutou as suas súplicas e deu-lhe por dono um fabricante de tijolos que o fazia ir todos os dias ao povoado com uma grande carga daquele material.
O pobre animal acho, naturalmente, esta tarefa muito mais pesada que a anterior, e pediu de novo a Júpiter que lhe desse outro dono. Desta vez foi trabalhar para um curtidor de peles que o tratou com muito mais crueldade que os outros dois.
Quando o burro quis voltar para o seu primeiro dono, já era muito tarde.
Lição 
Nunca devemos reclamar do trabalho que garante nosso pão de cada dia. Sem ele tudo será mais difícil. 

*          *           * 

O CAVALO E O BURRO
Um cavalo e um burro iam caminhando por uma estrada, seguidos do seu dono. O cavalo não levava carga nenhuma, mas a do burro era tão pesada que ele mal podia andar, e por isso pediu ao seu companheiro que o ajudasse a levar uma parte dela. 
O cavalo, que era egoísta e de mau temperamento, negou-se a prestar ajuda ao pobre burro que de tanto peso não resistiu e caiu morto no meio do caminho. O dono, então, ainda ainda quis
 aliviar sua carga, mas já era tarde demais. Sem outra alternativa, resolveu passar tudo para cima do cavalo. Além disso tirou a pele do burro morto e colocou por cima da carga. 
Assim o cavalo, que não quis fazer um pequeno favor, viu-se obrigado a levar a carga e a sobre-carga.
Lição
Às vezes temos que pagar caro o nosso egoísmo.


*           *           * 

A ELEIÇÃO DA RAINHA DAS AVES
Um dia de primavera, todas as aves se reuniram para eleger uma rainha; surgiram várias dificuldades sobre a maneira de fazer a eleição. 
- A beleza é uma das qualidades que uma rainha deve ostentar, disse o pavão real. Mostremos todas a nossa plumagem.
- Em primeiro lugar está a dignidade, afirmou a coruja. Vejamos quem tem aspecto mais nobre. 
 O papagaio tomou a palavra e disse:
-  precisamos de uma ave que saiba falar melhor para nos defender com argumentos. 
Mas a águia se  manifestou perguntando: 
- O que é que nos leva acima de todos os seres vivos? por acaso não é o voo? e continuou seu argumento dizendo:
- Devemos, então, eleger para rainha aquela ave que mais alto subir ao céu.
E como a águia era robusta e vigorosa, impôs a sua vontade à assembleia. 
A um sinal previamente combinado, todas as aves se lançaram no espaço para ver qual se elevava mais alto. A águia não tardou muito e pairar acima de todas as outras. 
Mas, nesse momento, uma andorinha que ate então tinha ido tranquilamente pousada nos ombros da águia, abandonou o seu posto e elevou-se a uma altura ainda maior. 
Imaginem como ficou contrariada a águia, que já se sentia a rainha, ao ver a assembleia eleger um pássaro tão pequeno e insignificante. 
Lição 
Nem sempre vence o mais forte; a esperteza pode levar o insignificante ao poder.



*          *          * 
O BURRO DESCONTENTE
Num agreste dia de inverno um burro ansiava pela volta da primavera, porque poderia ter a fresca erva em vez da palha seca que lhe serviam numa humilde estrebaria. 
Pouco a pouco foi chegando o bom tempo primaveril e com ele a abundância da sua erva preferida e verdinha; mas o pobre jumento tinha que trabalhar tanto que logo se cansou da primavera e só desejava que chegasse logo  o verão. Quando finalmente viu realizado o seu desejo, o burro convenceu-se de que a situação não melhorara, pois tinha que andar todos os dias, carregado de hortaliças, sofrendo muito com o tórrido calor do sol. 
Só lhe restava desejar a vinda do outono; mas este ele sabia que nessa época era muito duro o trabalho, pois tinha que transportar grandes sacos de trigo, cesto de maçãs, fechos de lenha e outras provisões para o inverno; por isso o burro começou a suspirar pelo inverno em que, pelo menos, poderia descansar, ainda que as rações não fossem as melhores e mais abundantes.
Lição
Contentemo-nos com o que temos, lembrando-nos que há quem sofra muito maiores privações.

*          *           * 

A RAPOSA E A MÁSCARA
Num certo dia de verão, uma raposa passeava polos campos de trigo e encontrou no caminha uma máscara de homem jogada ao chão. Imediatamente pegou-a com muita admiração e imaginando o quem poderia fazer com aquele estranho objeto.
Ao olhar mais de perto percebeu que era oca e começou a rir gostosamente; em fim disse: 
- É uma pena que uma cabeça de rosto tão inteligente não tenha miolos!
Lição
De nada vale a boa aparência para quem não tem juízo. 

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ALGUMAS FÁBULAS DE ESOPO
Arranjadas em quadras
Por F. de Paula Brito.
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O GALO E A PÉROLA 

Galo de linda plumagem
Num monturo esgravatava, 
As migalhas e os bichinhos
Comento, quantos achava. 
.
Por acaso dentre as unhas
Linda pérola lhe salta, 
Ao vê-la, diz pronto o galo, 
A quem juízo não falta: 
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"Porque vens,  ó fina pedra, 
A meus olhos te mostrar, 
Se lapidário não sou, 
Que te possa aproveitar ?

Quando no cisco esgravato, 
Vens-me ofender com teu brilho?
Mas me serviras se foras 
Neste instante um grão de milho!"
.
Isto dizendo foi logo,
Outro lugar procurar, 
A linda pedra deixando
Sem nela querer tocar. 

Moralidade

De exemplo serve, aos leitores, 
Esta fábula moral, 
Que lendo tudo, se esquecem
Da obrigação principal.
.
Atrás de coisinhas fúteis, 
O tempo gastam a ler, 
Sem que nos livros aprendam 
O que bom fora saber. 
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Leem fábulas de Esopo, 
Acham graça e gosto nelas; 
Porém a moral desprezam, 
Que as faz no mundo tão belas!
.

*          *          * 


AS POMBAS E OMILHANO

As Pombas pelo Milhano
Sofrendo perseguição, 
Fugiram dele, e buscaram
A amizade do falcão. 
.
Este, porém, sucedendo 
Na proteção do Milhano, 
Com menos razão do que ele, 
Com elas foi mais tirano. 
.
Se estranhas sendo ao milhano, 
As Pombas o mal sentiram; 
Maior dano o Falcão fez-lhes, 
A quem proteção pediram. 
.
"Do mal a culpa foi nossa, 
Disseram elas então, 
Querendo achar diferença
Entre um Milhano e um Falcão!"
.
Moralidade 
Se dever é do que sofre
De posição melhorar, 
Buscando, sendo possível, 
Bom protetor encontrar;
.
Daqueles, a quem se entrega, 
É bom das baldas saber;
Porque não venha, afinal, 
Em vez de ganhar, perder, 
.
O que às tristes mansa Pombas
Fez o Milhano e o Falcão, 
Faz muita gente, que abusa
De sua posição!
.


*          *          * 

O ASNO E O LEÃO 

Um asno simples e torpe
Com um leão se encontrou, 
E de altivo e presunçoso
Desta sorte murmurou: 
.
"Vai-te daqui! ..." De admirado
Para o Leão... mas pensando 
Em si mais do que no Asno,
Prosseguiu assim falando: 
.
"Punir deste desgraçado
A ousadia, eu bem pudera; 
Mas que ganha numa lesma
Sujar a boca uma fera?"
.
Assim o insulto tomado
Como de quem o dizia, 
Do miserável não pune
A desmarcada ousadia. 
.

Moralidade
Homens nobres e esforçados
Muitas vezes sofrem mais
Do que outros, sendo inferiores, 
 Suportam dos seus iguais.
.
Há néscios, que se entremetem 
Aonde não são chamados, 
E dizem bestialidades
Só por não estarem calados. 
.
Porém os homens sensatos, 
Os fortes, como o Leão, 
Ao ver esses miseráveis
De nojo cospem no chão
.


*          *          * 

JUNO E O PAVÃO
A Juno foi se queixar
Mui descontente o Pavão, 
Dizendo não ser das aves
A de mais estimação. 
.
Que o rouxinol, pequenino, 
Mais vantagens possuía,
Que tinha um cantar tão doce, 
Que em geral o distinguia.
.
Depois de tudo o que ouviu, 
Disse a Deusa, com saber, 
Que ele não tinha motivo
Para tantas queixas fazer. 
.
Que visse que as suas penas, 
Tão cheias de olhos, tão belas, 
Ao clarão do sol brilhavam
Como de noite as estrelas. 
.
"Eu dera tudo isso, torna
O Pavão quase a chorar, 
Para, como o Rouxinol, 
Ter a voz, saber cantar."
.
"Cada qual qual tem sua prenda, 
Disse a Deusa com brandura; 
Tem-na o Rouxinol no canto, 
E o Pavão na formosura."
.
Moralidade
Vê-se aqui que ninguém vive
Nesta vida satisfeito; 
Pois todos querem ter tudo
Ao seu contento a seu jeito.
.
Tem a voz o Rouxinol, 
Ligeireza o Gavião,  
A Águia aforça, e assim todos
No mundo prendados são.
.
Há sábios, homens de letras, 
Poeta, artista, cantor;
As coisa em seus lugares
Pôs no mundo o Criador. 
.


*          *            * 

O CÃO E A OVELHA
Dizendo haver emprestado
Em certo tempo algum pão, 
Paga disto e com maus modos, 
À ovelha pediu o Cão.
.
Porém ela que não tinha
Comido pão emprestado, 
Respondeu, como devia, 
Que o cão estava enganado.
.
 Trouxe este três testemunhos:
Um Buítre, um Lobo e um Milhano, 
Que em favor do cão juraram
Da pobre Ovelha em dano.
.
Foi condenada a pagar 
A Ovelha o que não comeu; 
A lã (o só bem que tinha)
Tosquiada ao credor deu! 
.
Desde então ficou a Ovelha
Quase muda, de assombrada! 
E desde então nunca teve
Lã, que não fosse cortada. 
.

Moralidade
Quando esta fábula Esopo
Traçou, quase que previa
O que no século presente
Por este mundo haveria!
.
Por dinheiro, ou por favores, 
Há quem venda a consciência
Pra servir a um poderoso, 
Para oprimir a inocência.
.
E, sobre falso pretextos,
O rico, que não precisa
De pão, arranca do pobre
A derradeira camisa! 
.


*           *           * 

O RATO E A RÃ
Um rio lago e profundo
Temendo um Rato passar,  
A uma Rã suplicou
A graça de o ajudar.
.
Malfazeja a companheira,
Logo em matá-lo pensou; 
No seu pé e no do Rato
Cautelosa um fio atou.
.
N'água caíram; debalde
Cuidava o Rato em nadar; 
A arteira Rã mergulhava
Somente pra o afogar!
.
Nesta luda em que se achavam, 
Perdido o tempo corria, 
Pois sendo as forças iguais, 
Nem um, nem outro vencia. 
.
Nisto passa e, por acaso, 
Feroz Milhano a voar, 
vendo o rato, cai sobre ele
E de novo se ergue ao ar.

No pé do rato subindo
A Rã também pendurada, 
Foi pela daninha fera
Como o Rato devorada! 
.
Moralidade
Quem falta à fé prometida, 
Sem motivo e sem razão, 
Aos inocentes armando
Ciladas, com vil traição; 
.
Encontra sempre um terceiro, 
Que às vezes desprevenido, 
Do ensejo se aproveitando
Tira pra si bom partido. 
.
O que ao Rato fez a Rã, 
Faz muita gente malvada, 
Até que de um mau nas garras, 
Vem acabar desgraçada.
.


OS LOBOS E AS OVELHAS 
  
Entre os Lobos e as Ovelhas
Havia guerra de morte; 
As Ovelhas com os rafeiros, 
Tinham partido mais forte. 
.
Os Lobos pediram paz, 
Declarando que entregavam 
Seus filhos, e em troca deles 
Os rafeiros desejavam. 
.
feito isto, os filhotes dos Lobos
Logo a uivar começaram
Tanto, e tão forte, que os pais
Astutos os reclamaram.
.
Do contrato a fé querendo, 
As Ovelhas resistiam, 
E os Lobos assim tiveram 
O pretexto que queriam.
.
Às ovelhas declararam
Guerra, certos de as vencer; 
Pois já rafeiros não tinham
Que as pudessem defender! 
.
Assim, com dobrada força
Os ferozes Lobos ficaram,
E os filhos dentre as Ovelhas
A ferro e fogo tiraram. 
.

Moralidade

Ninguém a seu inimigo
Entrega a força que tem;
 Sem reflexão não se aceita
Favor que do forte vem. 
.
Dos inimigos dos filhos
Ninguém em casa meter
Deve, porque se o fizer; 
Cedo se há de arrepender! 
.
Ficará como as Ovelhas,
Que dos Lobos em penhor
Tendo os filhos, se perderam;
É sempre o mesmo traidor. 
.


*          *          * 

O BURRO E A CADELINHA

Um Burro, por companheira
Tinha certa Cadelinha
Com quem o dono brincava, 
E na mesa se entretinha.
.

Disto invejoso buscou 
Também ver se conseguia 
Fazer as mesmas gracinhas, 
Que a Cadelinha fazia. 
.
Um dia entra o dono em casa, 
O Burro pôs-se a bater
Com as patas, lhe procurando
A cara para lamber.
.
Grita o homem, os criados
Logo acudindo à voz sua, 
Vão-se ao Burro, e com pancadas
Poem-no no meio da rua. 
.
Moralidade
Ninguém se meta a fazer, 
Importuno e entremetido ,
Aquilo, estouvadamente, 
Para que não foi nascido. 

Cante o Músico; o Letrado
Dê conselhos; de sua arte
Fale o Artista; reze o Padre; 
O Militar fale em Marte. 

Quem faz o contrário disto, 
Pensando agradar, ofende; 
Causa nojo o que é fingido; 
A ter graça não se aprende. 
.
Nicéas Romeo Zanchett 








                                                                

FÁBULAS DE BOCAGE - adaptação Nicéas Romeo Zanchett

O PAPAGAIO E A GALINHA 
Loquaz papagaio
Socava a gaiola, 
Soltando mil gritos
A uma janela.
.
Olhou para a rua 
Por onde vagava 
Galinha de popa
Que depenicava; 
.
Na língua das aves
Com um ar superior
Lhe deu estes chascos 
O vão palrador; 
.
"Deveras, vizinha, 
Que podes campar, 
Com a prenda galant3
De cacarejar!
.
Deixando ironias, 
Sempre às coisas pouca, 
Não tens outra chuiste
Senão essa touca. 

terça-feira, 24 de outubro de 2017

AS FÁBULAS DE LÁ FONTAINE - Por Nicéas Romeo Zanchett


BIOGRAFIA DE LA FONTAINE 

                   Jean de La Fontaine viveu desordenadamente grande parte da sua vida. Ele foi um literato de índole irrequieta e inconstante; todavia, seu amor aos estudos clássicos e particularmente pelos portas Virgílio e Horácio, mitigaram nele aquele senso de moleza e abandono egoístico ao ócio e às cômodas situações da vida.
                    Devido à sua índole incrivelmente volúvel, Jean de Lá Fontaine não conseguiu jamais disciplinar sua vontade; na verdade abandonou, depois de alguns anos, o emprego que o pai lhe conseguira e parece que apenas por breve tempo exerceu a profissão de advogado. Dele sabemos unicamente, com certeza, que viveu como um literato parasita, à mercê dos protetores, que o recebiam entre os estudiosos de seus salões, na faustosa Paris de Luiz XV. 
                      A Corte da França, no século XVII, a faustosa Corte do rei Sol, tinha marcada predileção pela poesia. O rei e os seus senhores de seu séquito divertiam-se em ouvir as composições dos poetas, encorajavam-nos e protegiam-nos. Segundo a moda do século, tudo servia de motivo para compor versos: histórias sagradas e profanas, poemas morais e religiosos, poesias de circunstâncias, que celebravam os acontecimentos e os fastos da Corte, poesias satíricas, mas sobretudo as brejeiras e galantes, que melhor convinham ao ambiente elegante e mundano.
                   Mas entre tantos compositores de versos, um se destaca de todos e representa, realmente, a grandeza poética de seu século: Jean de La Fontaine. 
                   Ele nascera em 1621, em uma cidadezinha do Norte da França: Chàteau-Thierry. Não temos notícias muito seguras quanto à sua primeira mocidade nem sobre os estudos feitos. Sabemos que estudou latim, mas que não conhecia grego; leu clássicos gregos nas traduções latinas e apaixonou-se especialmente por Plutarco e Platão, além de, naturalmente, de Homero.
               A vida de Lá Fontaine é pobre de acontecimentos, e aqueles poucos que conhecemos possuem o único interesse de estarem ligados ao nome do grande poeta. Casou-se aos 26 anos para agradar a seus pais; depois, dedicando-se aos estudos de Direito, acabou se aborrecendo bem cedo da profissão de advogado e sua vida se dividiu entre Paris e a cidade natal, e pouco a pouco os liames de família se foram afrouxando até se dissolverem  quase completamente. Jean nascera em um ambiente burguês, mas seu caráter era tipicamente adverso à vida ordenada e metódica. Gostava de flanar, estudar para distrair-se, não tolerava restrições nem sujeições. Dada a falta de vontade que ele mesmo repetidamente confessa, não tentou jamais modificar seu próprio temperamento volúvel e amante de diversões poéticas e de viver no mundo da fantasia. 
              Ele mesmo nos revelou o próprio caráter através de suas ações e, melhor ainda, de sua obras; homem ingênuo, sonhador, mais ocupado com a poesia do que pelos negócios da família, sem preocupações quanto ao presente e muito menos pelo futuro. 
                Devido à sua falta de senso prático, encontrou-se frequentemente, em dificuldades materiais; viveu sempre de generosas proteções, mas esta vida de parasita, que a nós pode parecer humilhante, não parecia tal, em um século em que os senhores, seguindo o exemplo do rei, consideravam uma glória rodear-se de escritores e artistas.
               A vocação poética nele se revelou declamando uma Ode de Malherbe. Cheio de entusiasmo, passou a ler este autor, a meditá-lo, a imitá-lo. Compelido pelo seu amor pelos poetas latinos, próprioo foi apresentado à duquesa de Boillon. Ela apreciou o talento espontâneo do jovem poeta provincial, encorajou-o e induziu-o a estabelecer-se definitivamente em Paris. Aqui La Fontaine teve oportunidade de aprofundar seus estudos, de ampliar suas relações no mundo social e literário. 
                       O primeiro trabalho que o tornou conhecido foi uma adaptação de versos, de uma comédia latina de Terêncio. O superintendente das finanças, Fouquet, simpatizou com ele, tratando-o com muita generosidade. Para ele, La Fontaine compôs os poemas "Adônis" e "O Sonho de Vaux". Este último devia ser a exaltação do fausto e da glória de Fouquet, mas não foi completado, porque o ministro, caindo em desgraça, foi condenado como criminoso de Estado. Fiel ao seu benfeitor, o poeta ousou compor uma comovedora "Elegia" e depois uma "Ode ao Rei", ambas para implorar a clemência de Luis XIV para o ministro prisioneiro. Perdera um protetor, mas La Fontaine logo encontrou outros, também bastante generosos e capazes de apreciar não só o seu talento poético, mas ainda a simples bondade de sua alma. Não foi de resto, uma generosidade desperdiçada, o poeta recompensou seus benfeitores (senhores e nobres dama, mais ou menos famosos) dedicando a eles sua produção poética e ligando-lhes, assim, a recordação à sua imperecível glória. 
                        Em Paris, La Fontaine estreitou amizade com os melhores talentos de seu tempo: Boileu,  Molière, Racine. Neste período, depois dos quarenta anos, começou a compor suas novelas e a publicar as coletâneas intituladas "Contos e Novelas em Versos". O assunto de contos foi extraído, em grande parte, de Machiavelli, Boccáccio, Ariosto, além de Ovídio e da novelística popular francesa. Neste gênero literário, La Fontaine encontrou o campo em que poderia livremente exprimir seu espírito alegre, estroso, livre de escrúpulos morais. Estas líricas galantes, de conteúdo quase sempre licencioso, são escritas em tom brincalhão e cético. Tiveram enorme sucesso. Infelizmente, os argumentos das histórias são, geralmente, imorais, mas o estilo é elegante, cheio de finura e de espírito. Revelam-nos a habilidade do poeta em observar o colher do real, com poucos traços, os tipos mais diferentes; muitas vezes, os contos são animados por observações maliciosas, reflexões pessoais, que preludiam as "Fábulas". Estas histórias provocaram contra La Fontaine muitas desaprovações; quando foi eleito membro da Academia, precisou ouvir um discurso em que não faltaram censuras nem exortações para "prosseguir" no caminho da virtude e unir à pureza da vida aquela de estilo. 
                   Como diz claramente no prefácio da primeira seleta, La Fontaine estava sinceramente convicto de que os seus "Contos" não representavam um perigo para a moral nem pudessem perturbar os espíritos. Todavia, mais tarde, durante uma grave enfermidade, prometeu ao seu confessor que pediria, publicamente, perdão a deus pelo que escrevera. Restabelecendo-se, manteve a promessa, manifestando seu ato de contrição perante a Academia, durante a primeira sessão de que participou e prometendo renunciar à publicação de seus contos e novelas, porque suas velhas ideias não mais condiziam com seu atual pensamento.  Nos últimos anos de sua vida, a força do engenho se lhe foi enfraquecendo, com as energias físicas. Viu aproximar-se a morte, com resignação, e até a predisse, em uma carta a um velho amigo ao qual escreveu, em 10 de fevereiro de 1695 "Antes que você receba esta carta, as portas da Eternidade talvez já estejam abertas para mim". Realmente faleceu em paris, no dia 13 de abril do mesmo ano. 
                  Nós estamos habituados a considerar La Fontaine sobretudo como poeta dos "Contos" e das Fábulas". Mas antes, durante e depois destas obras maiores, ele escreveu, em prosa e em verso, sobre os mais diversos assuntos. Suas cartas, por exemplo, são um modelo de ingênua simplicidade, e revelam-nos gostos, sentimentos e mágoas de seu coração. As dedicatórias, os prefácios de sua obras e a "Vida de Esopo Frígio", que precedem a primeira coletânea de fábulas, são escritos em uma prosa elegante e muito viva. A exemplo do escritor latino Apúleu, compôs, também, um romance intitulado "Os Amores de Psique e Cupido". Mas a glória universal de La Fontaine está ligada às fábulas. Estas representam, realmente, sua obra-prima. 
                     A fábula é um gênero literário antiquíssimo; basta pensar em Esopo e em Fedro. Outras fábulas de origem popular tinham sido compostas durante a Idade Média. O poeta hauriu, pois, nestas fontes e em outras diversas, mas soube fazê-las, suas, dar-lhes um caráter pessoal e inconfundível.  Como todos os grande escritores de seu tempo, dedicava um verdadeiro culto pelos antigos e esta espécie de sagrado respeito induzia-o a consider-se inferior. Entretanto, La Fontaine escreveu, certa vez: "A minha imitação não é uma servidão." Na verdade retoma a fábula clássica, mas renova e a torna mais rica e mais profunda, sem tirar-lhe nada de sua clareza. Ele soube observar a natureza e os animais e lançou em suas fábulas o tesouro das observações apanhadas pelo seu espírito agudo e curioso, e pela sua viva inteligência . Nas fábulas, ele é deveras poeta universal. Não dominado por objetivos morais e didáticos, e também, se a dedicatória ao Delfim afirma. "eu me sirvo dos animais para instruir os homens", ele se limita a ver, constatar e pintar. 
                   É o poeta que observa como vivem os homens, com suas fraquezas, com seus sentimentos generosos ou mesquinhos, que os impelem a agir. La Fontaine colhe na sua realidade os tipos humanos e os retrata com veracidade, cada qual com sua linguagem e a mentalidade que são peculiares às suas condições. Mas a fantasia do poeta soube transformar cada um destes personagens e os apresenta sob as vestes de animais, em tipos universais. Cada fábula é um pequeno drama, que representa os mil dramas de que a vida cotidiana dos homens está embebida. O poeta vê a realidade com límpido olhar de criança, mas também com a sábia ironia do homem maduro, com malícia bonacheirona, que é própria de seu caráter. 
                     Estas composições poéticas, breves, perfeitas, tão diferentes nas mil caricaturas dos defeitos e dos vícios humanos, condizem perfeitamente ao seu temperamento de autor, volúvel, cheio de fantasia, incapaz de aplicação prolongada, tanto que escreve, no epílogo IV volume das "Fábulas": "os trabalhos longos assustam-me". Através de cada fábula, que é um modelo de concisão, o poeta nos pinta, em traços rápidos e eficazes, a vida social, a natureza, a política, o homem, humilde ou poderoso. 
                   Os versos de La Fontaine, em sua cristalina pureza, possuem uma poderosa eficácia, justamente porque são simples e espontâneos, livres do tom enfático e empolado que encontramos em tantos escritores da época. 
                  Eis porque as fábula de La Fontaine permanecem jovens.
                   As fábulas encontram-se reunidas em doze volumes. A coletânea dos seis primeiros foi publicada em 1668 e obteve enorme sucesso. Os outros volumes saíram em 1671, em 1678/79 e em 1694.  Em vinte e cinco anos, as "Fábulas" foram impressas trinta e sete vezes. 
                Quais são as mais belas? Madame de Sévigné  escrevia, depois da publicação da segunda seleta: "julgamos a princípio distinguir alguma, , à força de lê-las e relê-las, acabamos achando todas belas. E a quem lhe pedia um juízo, respondia: "É uma cestinha de cerejas; escolhem-se as mais belas e acabamos esvaziando-a, sem percebê-lo."
    
O LOBO E O CÃO
Um lobo espantosamente magro encontrou um cão gordo e bem nutrido. Não podendo atacá-lo, chegou-se a ele humildemente, e o cão lhe disse que, se desejasse viver tão bem quanto ele, era só acompanhá-lo até sua casa. Mas, quando o lobo viu a marca que a coleira deixara no pescoço do cão, alegou que preferia passar fome a perder a liberdade. 

*

OS DOIS BURROS
Dois burros caminhavam um ao lado do outro. Um carregava aveia e, outro, dinheiro. O segundo, orgulhoso de sua carga, caminhou todo ancho. Surgiram dois bandidos, que se atiraram sobre ele e o cobriram de pancadas. O outro burro, então, lhe disse: "Amigo, nem sempre é bom ter emprego importante. Se você estivesse servindo um moleiro, como eu sirvo, estaria são e salvo. 



O LEÃO E O BURRO VÃO à CAÇA 
Certo dia, um leão pensou em ir à caça e, para desentocar os animais, fez-se acompanhar por um burro, ao qual ordenou que ficasse escondido na moita, a zurrar. Os bichos da floresta, apavorados com aquela voz insólita, fugiram e foram cair nas garras do leão. O burro atribuiu, então, todo o mérito da caçada si, mas o leão lhe respondeu: "Eu também me espantaria com o seu zurro, se não conhecesse você e sua raça."

 * 

  O LEÃO E O MOSQUITO 
Uma vez um mosquito declarou guerra ao leão, dizendo-lhe que pouco se importava com seu título de rei. Dito isso, começou a picá-lo por todos os lados, tornando-o furioso, não lhe dando trégua, até que o leão caiu esgotado. O inseto, então, se retirou cheio de orgulho, mas, enquanto ia anunciar a todos os demais bichos sua vitória, caiu numa traiçoeira teia de uma pequena aranha. 

 *

O REI, O MILHAFRE E O CAÇADOR 
Vivo, no ninho, um caçador pegou, 
Uma vez, um milhafre, e o destinou

Ao príncipe por mimo. Era precioso,
porque raro, o presente. 

Timidamente dado ao poderoso, 
O pássaro, se o conto não nos mente, 
Imprime logo a garra - ó impiedade! -
Bem no nariz da Sua majestade. 
- Como no real nariz? - Do próprio rei. 
- Não trazia a coroa então, já sei...
- E que o trouxesse! O pássaro não quis 
Investigar de quem fosse o nariz. 
Renuncio a pintar, por não ter cores, 
Dos cortesões a lástima, os clamores. 
Quieto o rei ficou, porque já vêem
Que a majestade os gritos não vão bem. 
Quedo também no olímpico poleiro
O pássaro ficou, muito lampeiro. 
O dono o chama e grita e se afadiga
Mostra-lhe o engodo, o punho, qual cantiga! 
Parecia que ao bicho apetecia, 
Embora o ruído, ali passar o dia
E pernoitar ainda empoleirado
No nariz inviolável e sagrado. 
Tentar tirá-lo era o irritar. Enfim 
Resolveu-se a largar o rei, e assim
Este falou: - "Deixai que vão em paz
O milhafre e o rapaz. 
Bem se saíram, fosse como fosse,  
Um milhafre, outro, rústico mostrou-se. 
E eu, que como um rei deve de obrar, 
Do suplício hei por bem de aliviar! 
Pasmou a corte. Os cortesões não cessam 
De exaltar feitos tais, não quero que os conheçam: 
Muito poucos, e fossem reis até, 
Fariam como este . o certo é
Que se livros de boa o caçador; 
E o seu erro maior, 
O dele e o do animal, foi não saber
Que é mau do amo aproximar-se tanto. 
Se os tristes, entretanto, 
Só com os do mato usavam de se haver!...
.
Diz Pilpay que se deu na Índia o caso. 
Naquela terra, um repeito absoluto
Vota o homem ao bruto. 
O próprio rei temeu tocar-lhe, acaso. 
Pensava em si:
- E quem nos diz que esta ave de rapina
Não combateu em Troia, e que alta sina
De príncipe e de herói não teve ali? 
E a ser o que já foi, pode tornar. 
Pitágoras ensina
Que com brutos a forma perguntamos: 
Humanos ora estamos. 
Logo voláteis recortando o ar. 
.
Como o canto varia, 
A segunda versão ora ofereço. 
.
Contam que certo caçador, um dia, 
Um milhafre apanhou (raro sucesso)
E ao rei o foi levar
Como presente muito singular; 
Uma vez em cem anos nos acontece; 
É o cúmulo da caça. 
Rompe de cortesões cerrada massa
O caçador, aceso de interesse. 
Já pensa que enriquece; 
Com tal presente verdadeira mina; 
Mas a ave de rapina, 
Nunca educada para estar no paço, 
As rígidas unhas d'aço
Ferra ao nariz do mísero sujeito.
Ei-lo a gritar, e eis em riso desfeito
Príncipe e cortesões. Quem não riria? 
Eu não  me conteria. 
Que um papa ria, isso, em boa fé. 
Não me atrevo a jurar; mas olhem que é 
Bem desgraçado um rei que nunca ria; 
É o prazer dos deuses. Apesar
Dos cuidados, ri Jové e os imortais. 
A crer, deve-se crer - 
Nas velhas tradições de nossos pais, 
Rui, riu a arrebentar,
Quando uma vez lhe trouxe de beber
Vulcano, o coxo. O que houve lá não sei, 
Mas com razão a fábula variei; 
Pois, já que aqui se trata de moral,
A aventura não era original; 
Um caçador simplório é mais frequente
Do que um rei indulgente. 

*          *           * 
  

A RAPOSA E AS UVAS
Contam que certa raposa, 
Andando muito esfaimada,  
Viu roxos, maduros cachos
Pendentes de alta latada.
De bom grado os trincaria; 
Mas, sem lhes poder chegar. 
Disse: "estão verdes, não prestam,
Só cães os podem tragar."
Eis que cai uma parra, quando
prosseguia o seu caminho; 
E crendo que era algum bago
Volta depressa o focinho. 

*          *          * 

O AVARENTO 
Quem não usa não tem, reza o adágio; 
É bem verdadeiro;
Pois nada prestará, sem desfrutá-lo, 
Acumular dinheiro.
Esopo no seu conto
Do tesouro escondido
Fornece belo exemplo ao nosso ponto
.
Hore outrora um avarento
que ouro sobre ouro juntava, 
E nem um real gastava; 
Dele escravo e não senhor, 
Ao vê- imaginaríeis
Que fortuna assim unida, 
Guardava para outra vida, 
Para outro mundo melhor. 
.
Enterrou-o numa cova, 
E a alma enterrou com ele. 
Coma, beba, durma, vele, 
O seu único prazer
É pensar a cada instante
No seu virginal erário, 
Que adora como sacrário, 
E a cada instante ia-lo ver.
.
Foi lá, foi lá tantas vezes. 
Que um cavador, com suspeita
Do mistério, a cova estreita
Abriu, e tudo roubou. 
Pouco depois o avarento
O passeio costumado
Fez ao seu a ouro adorado; 
Mas... só o ninho lhe achou!
.
Pasma, lágrimas derrama, 
Soluça; geme; suspira; 
De raiva os cabelos tira. 
É um sonho! não o crê. 
Nisto acaso um viajante
Por aquele lugar passava, 
E com dó de tal desgraça
Pede a razão do que vê. 
.
- Roubaram-me o meu tesouro! 
- O teu tesouro roubaram? 
E em que lugar o encontraram? 
- Junto desta pedra; aqui. 
- Porque o trouxeste tão longe? 
Receitas alguma guerra, 
Para o esconderes na terra
De todos, e até de ti? 

Veio espairecer no campo? 
Antes em casa guardado
Estivesse a bom recado, 
E tu vê-lo e a gastar. 
- Eu gastar o meu dinheiro! 
O meu dinheiro! estás louco! 
Custa a ganhá-lo tão pouco? 
Eu nunca lhe ousei tocar. 
.
- Que me dizes? Impossível! 
- Nunca. - Então inútil era. 
E isso te desespera?!
Famoso! deixem-me rir! 
Nesse caso põe na cova
Uma pedra; o mesmo importa
Que a tua riqueza morta; 
Do mesmo te há de servir. 
.
 Obras traduzidas por Bocage e adaptadas por Nicéas Romeo Zanchett. 

domingo, 22 de outubro de 2017

FABULAS DE FEDRO

O PARDAL E A LEBRE
O não saber guardar-se dos conselhos
Aos outros, é loucura conhecida, 
Que nestes poucos versos mostraremos. 
A uma pobre lebre, que apertava
Nos curvos esporões a águia invicta, 
Insulta sem cautela o vil pardal; 
"Porque suspiras, dás tristes gemidos?
Que é feito dessa tua ligeireza, 
Teus alígeros pés aonde estão?"
Inda falando, chega um fero açor, 
E nas torcidas garras o arrebata. 
O pardal, que chilreava tão ufano, 
Clamando em vão aos ares tenebrosos, 
Vítima veio a ser das fatais unhas. 
A lebre meia morta teve ainda, 
Primeiro que espirasse, o triste gosto, 
De lhe poder dizer estas palavras: 
"Tu, não há um momento que zombavas
Da minha desventura, e que entendias
Estar muito seguro nesta cena, 
Já te vês reduzido à mesma sorte; 
A queixar-te, e chorar o teu destino."

       *        *        * 

O SAPATEIRO MÉDICO
Um sapateiro mau já consumido
Da importuna pobreza, vai a ser 
Médico num lugar desconhecido.
Um antídoto falso à gente inculta,
Que juntando os seus gárrulos enganos,
Muito em breve o apregoa a incerta fama. 
Sucede pois cair em grava queixa
Desta mesma cidade o destro rei; 
Faz chamar este sórdido homicida, 
E por firmar melhor o seu conceito, 
Pede aos servos um copo cheio de água
Fingindo que mistura um tal veneno
C'o antídoto falaz do charlatão: 
- "Bebe, lhe diz o rei; pois se a mistura 
Te não ocasionar o menos dano,
Além de engrandecer o teu remédio, 
Liberal te darei um grande prêmio."
 O espúrio professor então temendo, 
O suposto perigo de morrer, 
Precisando se vê a confessar
Que a loucura do vulgo, e não a arte
Erradamente o fez filho de Apolo. 
O rei então juntando os moradores, 
Com justíssimo enfado acrescentou: 
-"Quanta julgais será vossa demência, 
Quando entregar quereis vossas cabeças
A um homem fatal, a quem os outros
Não confiarão seus pés para os calçar?"
Isto lhe diz alguns, que são tão loucos, 
Que dão o lucro vil aos curandeiros. 

*        *         *

O CARECA E A MOSCA 

Na cabeça descoberta de um careca,
Mordicou uma mosca mui prolixa;
Este logo, com intento de esmagá-la
Dá em si próprio om grande bofetão.
A mosca diz então por zombaria: 
- "Se tu te vingares da picada
De um inseto volante tão pequeno, 
Intentaste matar-me cruelmente; 
Como a ti mesmo deves castigar, 
Acrescentando ao mal que a ti fizeste, 
E vil injúria de uma bofetada?"
- Quanto a mim, respondeu p homem calvo, 
Posso reconciliar-me facilmente;
Sei que não tinha desígnio de ferir-me;
Mas és tu um vil animal importuno, 
Que gostas de chupar o sangue humano, 
Quisera de picado dar-te a morte, 
Inda que a mim fizesse mal maior. 
Lição
Esta fábula ensina que se concede o perdão, com maior facilidade àquele que delinque sem pensar, do que àquele que peca de forma pensada pensada. 
É, pois, incontestável que este último mereça toda a sorte de castigo.

 *         *         *

O CAÇADOR E O CÃO

Um cão muito vigoroso em perseguir
Outros brutos mais leves na carreira, 
Tinha rendido sempre bons serviços
Ao seu senhor; enfim veio a fazer-se
Já debaixo do peso dos seus anos, 
Enfermo gravemente, e muito frouxo. 
Este com um javali lutando um dia
Com bravura o agarrou por uma orelha; 
Mas como já tinha dos dentes podres, 
Por já não poder mais, largou a preza. 
Irado o caçado o descompõe;
 O velho cão responde como pode: 
- "Se acaso mal te sirvo, certamente 
Não é porque me falte ainda o valor, 
As forças tão somente me deixaram. 
Tu louvas o que fui em outro tempo, 
O que não posso ser, é que condenas." 
 Lição
Esta fábula nos ensina que nós humanos só damos valor àqueles que de alguma forma ainda nos servem. 

*          *          * 

O LEÃO E O RATO 
Enquanto no bosque dormia o bravo leão,
Uns detestáveis ratos se divertiam; 
Acontece que um deles descuidou-se e pisou no seu corpo
O leão, despertado em sobressalto, 
Com muita presteza agarra o pequeno infeliz, 
Que o perdão logo lhe suplica; 
E à imprudência sua o crime imputa. 
O rei dos animais já persuadido 
que não é de sua honra a vil vingança.
Generoso perdoa, e o deixa ir. 
Poucos dias depois, a mesma fera
Em campanha caçando numa noite escura, 
Descuida e cai num grande fosso. 
E vendo-se ali preso na esparrela,
Entrou logo a rugir com grande força. 
A tão terrível voz o rato acode, 
E mui compadecido assim lhe diz: 
Não temas, ó leão, porque vos quero 
Um serviço fazer, que corresponda 
Ao grande benefício, que eu de vós 
Ha pouco recebi, que me não esqueço. 
No mesmo instante entrou a examinar 
O tecido do laço insidioso, 
E depois de ter dado várias voltas
Ao redor dos cordéis, que tinham nós, 
Principia a roê-los de tal sorte, 
Que em breve tempo fez muitas largas
As malhas engenhosas desta rede. 
Por este meio deu ao leão preso
Em pouco tempo o poder e a liberdade. 
.
Lição
Nunca podemos imaginar de onde virá a ajuda de que precisamos nas horas mais difíceis.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

FÁBULAS DE PILPAY

Adaptação: Romeo Zanchett
.
Pilpay é o suposto autor duma coleção de fábulas, chamadas FÁBULAS DE PILPAY, que teve origem numa antiga coleção índica, escrita em sânscrito e intitulada PANCHATANTRA. Primeiro foi traduzida para pahlavi cerca do ano 550 e subsequentemente transmitida através do árabe a todos os povos da Europa. Encontram-se versões em malaio, mongol e afghen.

O CORVO, O RATO E OS POMBOS
                 Perto de Odorna havia em tempos um sítio delicioso, que por ser habitado por muitas aves era muito frequentado pelos caçadores. Um corvo viu por acaso um dia neste lugar, no pé da árvore onde tinha feito o seu ninho, certo caçador com uma rede na mão. O pobre corvo a princípio assustou-se, julgando que era a ele que o caçador queria apanhar; mas o seu receio desvaneceu-se quando viu os movimentos do homem, que, depois de ter estendido a rede no chão, e de ter espalhado alguns grãos de trigo para atrair as aves, foi esconder-se por detrás de uma sebe. Mal se tinha deitado no chão quando veio um bando de pombos que se atirou ao trigo sem atender ao seu chefe que bem quis evitar isso, dizendo-lhes que não se deviam entregar assim aos seus impulsos. Este chefe prudente, que era um velho pombo chamado Montivaga, vendo que eles eram teimosos, muitas vezes se quis separar deles; mas o destino, que impiedosamente domina todos os entes vivos, obrigou-o a seguir a sorte dos outros, de modo que pousou no chão com os seus companheiros. Pouco tardou que se vissem debaixo da rede e a cair nas mãos do caçador. 
                 Então disse-lhes Montivaga com tristeza, que é que pensais agora? acreditar-me-eis para a outra vez que eu vos avise, se escaparmos desta? Bem vejo, continuou, reparando como eles se debatiam para escapar, que cada um de vós só se importa consigo, não cuidando dos seus companheiros; e deixai que vos diga que este modo de proceder é não só ingrato, mas também estúpido; devemos cuidar em nos ajudar uns aos outros, e pode ser que uma ação tão caritativa nos salve a todos; tentemos todos romper a rede. 
                 Todos obedeceram a Montivaga, e tão bem trabalharam que arrancaram a rede do chão e a levaram consigo para o ar. O caçador, vendo isto, e zangado por perder tão boa presa, seguiu os pombos, na esperança de que o peso da rede os cansasse. No entanto, o corvo, observando tudo, disse consigo: -"Esta aventura é muito interessante; não quero deixar de ver como acaba"; e portanto, levantou voo e segui-os. 
                    Montivaga, vendo que o caçador estava resolvido a persegui-los, disse aos companheiros: 
                 - Este homem não deixará de nos perseguir senão quando nos perder de vista; portanto, para isto não acabar mal, vamos nos dirigir para um bosque denso ou um castelo abandonado, para que, quando nos oculte alguma floresta ou muro, o desânimo o obrigue a retirar-se. 
                 O plano surtiu o efeito desejado, pois que, tendo-se escondido entre os ramos de uma densa floresta, onde o caçador os perdeu de vista, este voltou para casa muito desgostoso com a perda da caça e da rede. 
                  Quanto ao corvo, continuou a segui-los, tendo a curiosidade de ver como se escapariam da rede, para no futuro poder por em prática o mesmo processo se necessário fosse. 
               Os pombos, vendo-se assim livres do caçador, ficaram muito felizes; a rede, porém, ainda os atrapalhava, mas Montivaga, que era criativo em invenções, não tardou a achar o remédio certo e disse: 
               - Devemos nos dirigir a um amigo sincero, que, fora de toda a traição e segundo proposito, trate fielmente de nos livrar. Conheço um rato que vive perto daqui, fiel amigo meu, cujo nome é Zirac; tenho certeza de que ele roerá a rede para nos por em liberdade. 
                   Os pombos, que não pretendiam outra coisa, todos concordaram em voar até à casa desse amigo; e pouco depois chegaram à toca do rato, que apareceu ao ouvir o rufar das asas, e disse, admirado e surpreendido por ver Montivaga preso na rede; 
                 - Ó meu caro amigo! como te aconteceu isto?
                Montivaga respondeu-lhe: 
                - Fomos pegos de surpresa; peço-te, meu amigo fiel, que soltes primeiro os meus companheiros. Mas Zirac, mais aflito por ver seu amigo preso do que por todos os outros, queria libertá-lo primeiro; mas Montivaga exclamou: 
                      - Peço-te mais uma vez, em nome de nossa velha amizade, que soltes todos os meus companheiros antes de mim; porque, além de se dar o fato de eu como seu chefe ter de cuidar primeiro deles, receio que o trabalho que tiveres para me soltar te canse e tire o vigor para soltar os outros; ao passo que a amizade que me tens te animará para os soltar depressa, para que mais depressa me possas soltar.
              O rato admirando a solidez destes raciocínios aplaudiu a generosidade de Montivaga, e pôs-se a soltar os outros; e, feito isso, o que levou pouco tempo, pôs em liberdade o seu velho amigo. 
                Montivaga, uma vez livre, despediu-se, assim como os companheiros, de Zirac, agradecendo-lhe mil vezes a sua generosidade. E quando se tinham ido, o rato voltou para sua toca.
                O corvo, tendo observado tudo isto, teve grande vontade de conhecer Zirac. Para esse fim dirigiu-se à toca e chamou-o pelo seu nome. Zirac, assustado por ouvir uma voz estranha, perguntou quem era; ao que o corvo respondeu: 
                     - É um corvo que tem um assunto importante a tratar convosco. 
                  - Que assunto, responde o rato, podemos nós ter a tratar? Somos inimigos. 
                 Então o corvo disse-lhe que desejava pertencer ao número de amigos de um rato, que via ser tão sincero na sua amizade. 
              - Peço-vos, respondeu Zirac, que busqueis qualquer outra criatura cuja amizade melhor se case com a vossa disposição. Perdeis o vosso tempo querendo persuadir-me a chegar a uma reconciliação tão pouco natural. Somos incompatíveis. 
            - Não me faleis de incompatibilidades, disse o corvo, mas fazei uma ação generosa dando a vossa amizade a uma criatura inocente que vos pede com toda a educação. 
              - Podeis falar-me em generosidade até que vos estourem os bofes, respondeu Zirac; conheço-vos muito bem as manhas; em suma, somos criaturas de espécies tão diferentes que nunca poderemos ser amigos. O exemplo que me ocorre da perdiz, que impiedosamente deu a sua amizade a um falcão, é bastante para me fazer prudente.
                  Não acrediteis, continuou  o rato, que, fiado nas vossas promessas, me porei à vossa mercê. 
                 - Ponderai, respondeu o corvo, que não me vale a pena enganar a minha fome com um corpo tão pequenino como o vosso; não é portanto com esse fim que vos falo, mas sei que a vossa amizade me pode ser útil; não tenhais dúvida, portanto, em me conceder esse favor. 
                 - Os sábios antigos, respondeu o rato, aconselham-nos a que não nos deixemos enganar pelas boas palavras dos nossos inimigos, como aconteceu a um homem infeliz, cuja história, querendo vós, vos contarei. 

Lição 
É preciso ter muito cuidado ao dar amizade a um desconhecido.
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A PERDIZ E O FALCÃO
                   Uma perdiz, disse Zirac, conservando-se na toca, mas continuando amavelmente o seu discurso, passeava no sopé dum monte e canta, no seu modo tosco, tão agradavelmente, que um falcão ao passar por acaso naquele lugar, das alturas de seu voo conseguiu ouvir sua voz; decidiu posar perto dela para tentar uma aproximação e delicadamente travar conhecimento almejando uma possível amizade. 
                 - Ninguém, disse ele para si mesmo, pode viver sem um amigo; e dizem os sábios que aqueles que não tem amigos estão como que numa doença perpétua. 
                  Pensando assim ia dirigir-se à perdiz; mas ela, vendo-o tão próximo, escondeu-se numa cova, tremendo de terror. 
              O falcão seguiu-a, e chegando à entrada da cova, disse: 
              - Cara perdiz, confesso que até agora não tenho me mostrado amável para convosco, visto que não vos conhecia os predicados; mas pois que a minha boa sorte me fez conhecer o vosso canto, dignai-vos deixar-me falar convosco, para que vos ofereça a minha amizade e vos peça que me deis a vossa. 
                - Tirano, respondeu a perdiz, deixai-me em paz e não tenteis inutilmente reconciliar o fogo e a água! 
                 Mas o falcão não desistiu de seu objetivo e disse: 
                 - Amabilíssima perdiz, por favor afastai esses medos inúteis e injustificáveis, e convencei-vos de que vos estimo e desejo apenas que possamos nos conhecer melhor; tivesse eu outro propósito, não me demoraria aqui na entrada de vossa cova a pedir-vos tão amigavelmente para sairdes e vir conversar comigo aqui fora. Acreditai-me, possuo tão boas garras que tinha tempo para apanhar uma duzia de perdizes enquanto tenho estado a falar-vos. Estou certo que tereis bastantes razões para vos felicitar pela minha amizade; primeiro, porque nenhum outro falcão vos fará mal enquanto estiverdes sob a minha proteção; em segundo lugar, porque estando no meu ninho sereis respeitada por todos; e, finalmente, arranjar-vos-ei um macho para ser seu fiel companheiro e dar-vos as delícias do amor e da maternidade.
           - Custa-me crer que possais ser tão amável para comigo, respondeu a perdiz. Mas, mesmo se isso for dito a sério não devo aceitar a vossa proposta; porque sendo vos o príncipe das aves, e grande a vossa força, e eu apenas uma fraca perdiz, quando eu fizer qualquer coisa que vos desagrade, não deixareis de me matar! 
                - Não, não, de forma alguma, disse o falcão, não vos assusteis; as culpas dos amigos depressa se perdoam!
               Conversaram ainda mais neste sentido, e muitas objeções foram levantadas e respondidas satisfatoriamente, de modo que por fim o falcão mostrava-se tão sincero em sua vontade de ser amigo da perdiz que ela não pode recusar e saiu da cova para melhor conversar. E mal tinha saído, abraçou-a o falcão ternamente e levou-a para o seu ninho, onde durante dois ou três dias não fez senão tratar de a divertir. A perdiz, contentíssima por ser assim tratada, deu à língua mais liberdade do que antes tinha dado, e começou a falar muito da crueldade e selvageria das aves de rapina. Isto começou a ofender o falcão, conquanto de momento o disfarçasse. Um dia, porém, ele infelizmente adoeceu, o que o impediu de sair à cata de presas, de modo que começou a sentir fome; e faltando-lhe o que comer, não tardou que se tornasse melancólico, tristonho, e aborrecido. Este mau humor não tardou a assustar a perdiz, que, com muita prudência e um especto humilde, se refugiou num cantinho separado. Mas o falcão, pouco depois, não podendo mais suportar as exigências do seu estômago, resolveu arranjar uma discussão com a pobre perdiz. Por isso lhe disse: 
              - Não é justo que estejas ai à sombra quando todo o mundo está exposto ao calor do sol.
                 A perdiz, tremendo, respondeu:
              - Rei das aves, agora já é noite, e todo o mundo está na sombra assim como eu, nem sei de que sol falas.
                - Insolente! gritou o falcão, queres então dizer ou que eu sou mentiroso ou que sou doido? e dizendo isto,atirou-se a ela e matou-a na hora. 
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O HOMEM E A SERPENTE 
                   Um homem montado num camelo penetrou num bosque em certa ocasião; e foi descansar num ponto onde uma caravana havia estado e onde as fagulhas de fogueira que haviam acendido tinha incendiado uma moita onde estava uma serpente já cercada pelas chamas. O fogo a tal ponto envolvera a serpente que ela não sabia como fugir e já se dispunha a aceitar a morte, quando viu o homem e com mil palavra comovedoras lhe pediu que lhe salvasse a vida.  O homem, sendo de sua natureza bondoso, disse para consigo: "É certo que estas criaturas são inimigas da humanidade; as boas ações, porém, são de grande valor, do maior mesmo, quando feitas aos nossos inimigos; e quem semeia boas ações, colhe bons resultados." Feitas estas reflexões, o homem pegou num saco e atando-o à ponta da sua lança, estendeu-o à serpente por cima das chamas; a serpente atirou-se para dento do saco, e o homem, tendo-a salvo, disse-lhe que podia seguir  sua vida, esperando, porém, que ela tivesse gratidão bastante para lhe prometer que nunca mais faria mal aos homens, visto que um homem lhe tinha sido útil. 
                    A isto respondeu a criatura desagradecida: 
           -Enganas-te quanto a ti e quanto a mim; não penses que tensiono retirar-me mansamente; pelo contrário, o meu propósito e, primeiro agradecer-te, e depois inocular o meu veneno em ti e no teu camelo. 
                    - Monstro de ingratidão! respondeu o viajante, para ao menos um momento e dize-me se é legítimo pagar o bem com o mal. 
                    - Não, responde a serpente, legítimo não é; mas agindo desse modo farei senão o que vós fazeis a todos dias; isto é, pagar boas ações com ações más, e benefícios com ingratidão. 
                   - Não pode provar essa afirmação caluniosa, respondeu o viajante; direi mesmo que, se me puderes provar que qualquer outra criatura no mundo que seja da tua opinião, consentirei em aceitar o castigo que achares próprio infligir-me pelas culpas dos meus semelhantes homens.
                   - De boa vontade acedo a esse pedido, respondeu a serpente; e ao mesmo tempo vendo uma vaca, disse: 
                  Façamos a nossa pergunta a esta criatura que aqui está, e vejamos a resposta que ela nos dirá. 
                  O homem concordou; de modo que dirigindo-se ambos para a vaca, a serpente perguntou-lhe com é que uma boa ação se devia recompensar.
                     - Pelo seu contrário, respondeu a vaca, se vos referis ao costume dos homens; e isto eu sei por triste experiência própria. Pertenço a um homem a quem de vários modos tenho sido útil; todos os anos lhe tenho dado um vitelo, e constantemente lhe tenho fornecido leite, manteiga e queijo; mas agora que estou velha e que já não posso lhe ser útil como era, ele pôs-me a pastar para que engorde, tencionando vender-me para um açougueiro que irá me matar para vender minha carne a seus clientes; ora não se chama isto pagar o bem com o mal? 
                 Depois disto a serpente, tomando a palavra, disse ao homem: 
                 - O que dizes agora? não é seguir o vosso costume o tratar-te eu como tenciono tratar? 
                 O viajante, bastante atrapalhado por esta história pouco azada, teve, porém, a esperteza suficiente para responder: 
                  - Isto é apenas um caso isolado, e, deixai que vos diga, uma testemunha não é bastante para me condenar; vamos portanto a outra. 
                  Com todo o gosto, respondeu a serpente; interroguemos esta árvore que aqui está. 
                  A árvore, inteirada do assunto da discussão, deu o seu parecer nas palavras seguintes: 
                  Entre os homens as boas ações são sempre pagas com más ações. Eu protejo os viajantes do calor do sol, dou-lhes fruta para comer e um líquido delicioso para beber; e, contudo, esquecendo o prazer e a utilidade da minha sombra, eles cortam-me barbaramente os ramos para fazer o cabos para machados, e serram o meu corpo para fazer tábuas e traves. Não e isto pagar o bem com o mal? 
                 A serpente então perguntou ao viajante se ele já se dava por satisfeito. Ele, porém, estava a tal ponto confuso que não sabia o que responder. Ainda assim, esperando escapar ao perigo que o ameaçava, disse à serpente: 
           - Peço mais um favor; é apenas que eu seja julgado pelo primeiro animal que encontrarmos; faze-me esse favor, que é o único que te peço. Bem sabes que a vida é grata; deixa, portanto, que eu possa ter o meio de não a perder. 
                 Nisto passou uma raposa, a quem a serpente deteve, pedindo-lhe para pôr termo à discussão. 
                   A raposa pediu então que lhe dissessem o assunto que se discutia, ao que o viajante respondeu: 
                - Prestei a esta serpente um grande serviço,  e ela quer persuadir-me que em troca disto me deve fazer mal. 
                   - Se ela quer proceder para convosco como vós procedeis para com os outros, não pede nada de extraordinário, respondeu a raposa; mas para que eu cabalmente possa servir de juiz, dizei-me qual o serviço que lhe fizestes. 
                O viajante estimou ter esta oportunidade de expor a questão, e contou-lhe como tudo se passara; disse-lhe como tinha salvo a serpente das chamas com o saco pequeno que mostrou. 
                 - O que! disse a raposa com uma gargalhada; queres então que eu acredite que uma serpente tão grande coube em saco tão pequeno? É impossível. 
                  Tanto o homem como a serpente lhe afirmaram que assim fora; mas a raposa não quis acreditar. Por fim, disse: 
                    - Não há palavras que me possam convencer de que coisa tão improvável se houvesse dado; mas se a serpente se meter outra vez no saco, eu sem dúvida ficarei convencido do que ambos afirmais, poderei então dar a minha opinião sobre vossa disputa. 
                 - Com muito gosto, respondeu a serpente, e meteu-se dentro do  saco. 
                 Então a raposa disse ao viajante: 
                 - Agora tens em teu poder a vida do teu inimigo; e parece-me que não te custará muito decidir o que deves fazer a um tal monstro de ingratidão. 
                O viajante então, atando a boca do saco, fartou-se de malhar na serpente com uma grande pedra, e só deixou de o fazer quando a tinha de todo esmigalhado; e desse modo pôs fim ao mesmo tempo aos seus receios e à discussão. 
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LIÇÃO: Esta fábula ensina-nos que não devemos confiar nas boas palavras dum inimigo, para que o mesmo não nos aconteça. 
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AS AVENTURAS DE ZIRAC 
                 Nasci, disse Zirac, e vivi durante muito tempo na cidade da Índia chamada Marout, onde escolhi uma morada que parecia a própria habitação, para ali poder viver em sossego. Aí gozei durante muito tempo a maior felicidade da terra, e provei a suavidade de uma vida sossegada na companhia de outros ratos, boa gente e do meu gênio. Havia também na vizinhança um certo Derviche, que todos os dias ficava indolentemente em casa enquanto o seu companheiro ia pedir esmola. Nunca deixava, porém, de comer parte do que o outro trazia para casa, e de guardar o resto para a sua ceia. Mas quando se sentava a esta refeição, nunca achava a comida como a tinha deixado; porque enquanto ele passeava no jardim enchia eu a barriga, e sempre chamava os meus companheiros para comer juntos comigo. Mas o Derviche, encontrando sempre menos comida do que tinha guardado, acabou por se zangar muito, e procurou nos seus livros uma receita ou estratagema para nos apanhar; mas não lhe serviu de nada, porque eu era mais esperto do que ele. Um dia infeliz, porém, um dos seus amigos que voltava duma longa viagem, veio à sua casa fazer-lhe uma visita; e depois de terem jantado, puseram-se a discutir viagens. O viajante começou a contar o que de mais notável tinha visto; mas, enquanto se esforçava por lhe descrever os mais encantadores lugares por onde tinha passado, o Derviche interrompia-o de vez em quando com o barulho que fazia batendo as palmas e batendo o pé no chão para nos afugentar; porque, na verdade, nós várias vezes lhe atacamos a comida sem nos importarmos com ele ou com a sua visita. Por fim o viajante, jangando-se por Derviche lhe estar prestando tão pouca atenção, disse-lhe redondamente que fazia mal em o deter ali a incomodá-lo com narrativas a que ele não dava atenção nenhuma, fazendo pouco dele. 
              - Deus me livre, respondeu surpreso o Derviche, de estar prestando pouca atenção a uma pessoa do vosso valor; peço-vos desculpa de vos ter interrompido, mas há aqui um ninho de ratos que não me hão-de-deixar senão quando me tiverem comido a mim; e um deles é tão atrevido que me vem roer os dedos dos pés quando eu estou a dormir, e nãosei como apanhar o diabo do traiçoeiro. 
                   O viajante deu-se por satisfeito com as desculpas do Derviche e respondeu: 
                  -Há aqui com certeza um mistério; isto faz-me lembrar uma história notável que vos contarei se me quiserdes prestar mais atenção.
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MARIDO E MULHER 
                  Um dia, continuou o viajante, indo eu de jornada obrigou-me o mau tempo a parar numa cidade onde tinha conhecimentos em várias classes sociais; e não podendo prosseguir na minha viagem por causa da chuva que caia torrencialmente, hospedei-me em casa de uma amigo meu, que me recebeu com grande amabilidade. Depois da ceia deu-me para dormir um quarto que era separado do seu apenas por uma divisória finíssima; de modo que, sem querer, ouvi a conversa particular entre ele e sua mulher: 
                 - Amanhã, dizia ele, tensiono convidar os principais habitantes da cidade para uma festa dedicada ao meu amigo que me deu a honra da sua visita. 
                 - Tu não tens condições suficiente para sustentar a tua família, respondia a mulher, e está a falar em dar festas; antes pensassem em poupar o pouco que tens para o bem dos teus filhos, e te deixasses de festas. 
                 - Mas este é um homem de grande religião e santidade, respondia o marido, e cumpre-me mostrar o quanto me agrada vê-lo, assim como dar aos meus outros amigos o ensejo de lhe apreciarem a piedosa conversação; e não te deves ralar por causa da despesa, que isto pouco custará. A providência divina é grande, e não devemos pensar demais no dia de amanhã, para que não nos aconteça o que aconteceu ao Lobo.  
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O CAÇADOR E O LOBO
                Um dia, continuou o marido, um grande caçador voltando da caça ao veado, viu inesperadamente um javardo sair dum bosque e dirigiu-se para ele. Belo!, disse o caçador, este animal chega muito a propósito; aumentará bem a minha provisão. Dizendo isso, atirou-lhe uma seta tão certeira que o feriu mortalmente. Porém, às vezes, surgem acontecimentos inesperados que precisam de um cuidado excessivo das necessidades da vida, que este auspicioso princípio foi apenas o prelúdio de uma catástrofe fatal. Porque o animal sentido-se ferido, com tal fúria se atirou contra o caçador, que lhe abriu o ventre com os colmilhos, de modo que ambos morreram. 
                  No momento que isto acontecia passava por ali um lobo faminto que teve uma grande alegria ao ver no chão tanta comida disponível. Ainda assim, disse ele consigo mesmo, não devo estragar esta boa comida; mas cumpre-me aproveitar a minha sorte, para que isto me dure mais tempo. Estando, porém, com muita fome, resolveu prudentemente começar por encher bem a barriga e só depois guardar o restante para os dias seguintes. Porém, ão querendo perder nenhum bocadinho do seu achado, resolveu encetar pelo  que era mais grosseiro e por isso começou a trintar a corda do arco que era feita de tripa; mas mal cortou a corda com os dentes, o arco, que estava muito dobrado, deu-lhe tal pancada na cabeça que el caiu morto por cima dos outros cadáveres. 
                -  Esta fábula, disse o marido, ensina-nos que não devemos ser mesquinhos em excesso. 
                   - Bem, disse-lhe a mulher, se é esse o resultado da economia, pode convidar quem quiseres. 

                Resolvido o impasse, o marido convidou muita gente para a festa; mas no dia seguinte, estando a mulher a preparar o jantar e a fazer uma espécie de molho com mel, viu um tato cair na vasilha do mel, o que a agoniou e a fez abandonar aquela parte dos preparativos. Não querendo portanto fazer uso do mel, levou-o para o mercado e ali o trocou por alcatrão. Eu estava por acaso ao pé dela nesse momento e perguntei-lhe porque tinha feito uma toca tão desvantajosa.
                 - É, segredou-lhe ela, porque para mim não vale tanto como o alcatrão. 
                Então comecei a perceber que havia qualquer mistério no caso, que estava além da minha compreensão. O mesmo acontece com este rato; ele seria tão atrevido se não tivesse para isso uma razão qualquer que nós não conhecemos. 
                  - Os ratos, continuou ele , nesta parte do mundo, são uma raça manhosa, cobiçosa e orgulhosa; juntam dinheiro exatamente como os avarentos da humanidade; e quando um deles possui uma soma considerável, torna-se um príncipe, e tem um certo número de camaradas, que estão prontos a morrer por ele, assim como por ele vivem, porque ele paga as despesas de comida, etc., que fazem, e eles vivem como escravos em absoluta indolência. Quero crer que tal seja o caso desse rato atrevido; que ele tem muitos escravos da sua raça para o defender e ajudar nos seus projetos audaciosos, e que há dinheiro escondido na sua toca. 
                  O Derviche, mal ouviu o viajante falar em dinheiro, pegou um machado e trabalhou tão bem que, tendo aberto a parede, não tardou a descobrir o meu tesouro, que era de uns mil dinheiros em ouro, que eu tinha juntado com muito trabalho. Ha muito tempo que eles constituíam todo o meu prazer; todos os dias eu os contava; gostava de lhes mexer e de deixar cair em cima deles, pondo nisso toda a minha felicidade. Mas voltemos à história. Quando o ouro caiu para fora, o viajante exclamou:
                  - Ora, não tinha eu razão em atribuir a insolência destes ratos a uma causa desconhecida? 
                "Deixo à vossa imaginação a calcular o estado de atrapalhação em que fiquei ao ver os meus domínios saqueados deste modo. Resolvi mudar de casa; mas os meus companheiros abandonaram-me; de modo que verifiquei a verdade do provérbio, falta de amigos!"
                 Os amigos hoje em dia, deixam de nos estimar quando a nossa amizade já lhes não pode ser útil. Ouvi dizer entre os homens que uma vez perguntaram a um sujeito rico e espirituoso quantos amigos tinha. Quanto a amigos à moda de hoje, disse ele, tenho tantos quanto tenho de coroas; mas quanto a verdadeiros amigos, tenho primeiro que empobrecer para saber quantos tenho
                  Estava eu meditando no desastre que me tinha acontecido, quando vi passar um rato que antigamente se me confessava absolutamente dedicado, a tal ponto que diríeis que não podia viver longe de mim. Chamei-o, e perguntei-lhe porque me abandonava como os outros. 
                  - Então julgas, respondeu o ingrato, que somos tão tolos que te sirvamos de graça? Quando eras rico fomos teus criados; mas agora que estás pobre podes ter certeza de que não seremos os companheiros da tua pobreza.
                - Mas tu não deves desprezar os pobres, disse-lhe eu, porque eles são os amados da Providência Divina. 
                   - Isso é verdade, respondeu ele; mas não os pobres da tua espécie. Porque a Providência olha por aqueles que por causa da religião abandonaram o mundo; não por aqueles que o mundo abandonou!
                   Apesar de descontente comigo mesmo pela minha antiga generosidade para com tal vilão, não soube o que responder a uma observação tão cortante. Apesar da desgraça continuarei em casa do Derviche, para ver o que ele fazia do dinheiro que me tinha tirado; e vi que tinha dado metade ao amigo, e que cada um deles dormia com o dinheiro debaixo do travesseiro. Ao ver isto, lembrei-me logo de tentar reaver o meu tesouro. Com esse fim fui devagar até à cabeceira do Derviche e dispunha-me a retirar o dinheiro; mas infelizmente o seu amigo viajante que, sem eu o perceber, me tinha estado a observar os movimentos, atirou-me com o bordão com tão boa vontade que por pouco me não partiu a perna, o que me obrigou a voltar para a toca o mais depressa possível; e, ainda assim, não o fizessem dificuldade. Cerca de uma hora depois, tornei a sair, julgando que desta vez o viajante também estivesse a dormir. Mas ele era boa sentinela e não estava para correr o risco de perder a fortuna. Fiz-me, porem, valente e avancei, e já estava outra vez à cabeceira do Derviche quando a minha ousadia por pouco não me custou a vida. Porque o viajante deu-me outra pancada, e desta vez na cabeça,  que me atordoou a tal ponto que mal pude achar a toca. Nesta mesma ocasião me tornou ele a atirar com o bordão; mas, como não me acertou, consegui escapar; e, uma vez salvo, jurei nunca mais tentar reaver uma coisa que tanto trabalho e riscos me tinha custado. Seguindo este propósito, abandonei a casa do Derviche e retirei-me para aquele lugar onde me vistes com o pombo. 
                    A narração das aventuras do rato agradou extremamente à tartaruga, a qual abraçando-o, lhe disse: 
                 - Fizestes bem em abandonar o mundo e as suas intrigas, visto que não nos dão uma alegria perfeita. Todos aqueles que são perturbados pela avareza e pela ambição, não fazem senão preparar a sua ruína, como certo gato que ha tempos conheci, cujas aventuras, vos vou narrar, crente de que vos não desagradará ouvi-las.
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O GATO GLUTÃO
             - Certa pessoa que muitas vezes tenho visto, continuou a tartaruga, tinha em casa um gato que tratava muito frugalmente. Dava-lhe de comer, o suficiente para o sustento, mas nada mais; e o gato podia, se quisesse, ter ali vivido com muita felicidade; mas era muito glutão e, não se contendo com a comida de costume, andava sempre pelos cantos à procura de mais. Um dia, passando por um pombal, viu uns filhotes de pombos; e ficou com água na boca por aqueles petiscos. Por isso subiu até o pombal, e sem se importar que o dono do pombal ali estivesse, preparou-se para satisfazer os seus desejos. Mas o dono, mal viu o glutão do gato entrar, fechou todas as portas e tapou todos os buracos por onde ele pudesse escapar; depois tanto o procurou que o apanhou e acabou por enforcá-lo num canto do pombal. Pouco depois, passou o dono do gato, e, vendo-o pendurado naquela forca disse: 
                 - Infeliz glutão, tivesses tu te contentado com o bastante que te dava, e agora não estaria nessa situação! É assim, continuou ele moralizando, que os glutões insaciáveis fazem a sua própria desgraça. Ai! as felicidades do mundo são incertas e pouco duram. Os sábios, bem me lembro, dizem que não nos podemos ficar em seis coisas, nem delas há que esperar que sejam constantes; 
                 1° - Uma nuvem; porque num instante se desfaz;
                 2° - A amizade fingida; porque passa como um relâmpago.
                 3° - O amor de uma mulher; porque muda com cada capricho.
                 4° - A beleza; porque a destrói a menor injúria do tempo, da desgraça, ou da doença; 
                 5° - As orações falsas; porque não são mais que fumo;
                 6° - E os prazeres do mundo; porque se esvaem num momento.
              -   As criaturas de juízo, respondeu o rato, são todas dessa opinião; nunca tentam obter essas coisas vãs; não há nada a não ser a aquisição de um verdadeiro amigo que nos possa levar a esperar uma felicidade duradoura. 
                  Falou então o corvo, por sua vez: não há prazer ou vantagem terrena, disse como um verdadeiro amigo; o que tentei provar contando-vos a história seguinte. 
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O DOIS AMIGOS 
                Um certo sujeito, nobre e generoso por natureza, ouviu uma vez estando já na cama, alguém bau-lhe à porta fora de hora. Um tanto surpreso, perguntou, sem se levantar, quem estava ali. Mas quando pela voz percebeu que era um dos seus melhores amigos, levantou-se imediatamente, vestiu-se e, mandando o criado acender uma vela, foi abrir a porta.
                   Logo que o viu disse: 
                   - Caro amigo, sempre me é grato ver-te, mas neste momento é-me duplamente grato, porque estou certo, pela ocasião extraordinária desta visita, de que em alguma coisa te poderei servir. Não posso imaginar que virias a esta hora se não fosse para me pedir dinheiro emprestado, ou para te acompanhar ao campo, e é-me agradável poder-te assegurar que em qualquer das coisas te poderei servir. Se precisas de dinheiro, a minha bolsa está cheia, e para ti sempre aberta. Se vais ter um encontro com um inimigo, o meu braço e a minha espada estão ao teu dispor. 
                  - Não há nada de que menos precisa, respondeu o amigo, do que dessas coisas que me ofereces. Vim apenas saber da tua saúde temendo não fosse certo um sonho mau que tive. 
                Estando o corvo a contar esta fábula viram os amigos à distância uma cabrinha brava correndo com grande velocidade para o ponto onde eles estavam.
                  Tiveram todos por certo, pela rapidez com que vinha, que a perseguia um caçador; e imediatamente e sem cerimônia se separaram, tratando cada um de ser  por a salvo. A tartaruga meteu-se por água dentro, o rato fugiu para um buraco que por acaso ali encontrou, e o corvo escondeu-se entre os ramos de uma árvore muito alta. No entanto a cabrinha parava de repente e descansava à beira da água; o corvo, depois de olhar para um lado e para o outro sem ver ninguém, chamou pela tartaruga, que imediatamente por a cabeça fora da água; e vendo que a cabrinha estava com medo de beber. 
                  - Bebe sem receio, disse, porque a água é muito boa; e tendo a cabrinha bebido: dize-me, exclamou a tartaruga, a razão porque pareces estar tão assustada?  
                   - Razão, e forte, respondeu a cabrinha, porque acabo de escapar das mãos de um caçador que me perseguiu muito perto. 
                   - Vamos, disse a tartaruga, é-me grato ver que estás salva, e tenho uma proposta a fazer-te; se te agradar a nossa companhia, fica aqui conosco gozando a nossa amizade; acharás, eu te asseguro, que os nossos corações são honestos e o nosso trato agradável. Dizem os sábios que o número do amigos minora os infortúnios; e que se um homem tivesse mil amigos os devia considerar como não mais do que um; mas, pelo contrário, se tiver um só inimigo, o deve contar como se fossem mil, tão perigoso e funesto é ter um inimigo. 
                    Findo este discurso, o corvo e o rato vieram ter com a cabrinha, fazendo-lhe mil amabilidades; o que tanto lhe agradou que ela prometeu nunca mais sair dali na sua vida. 
                  Os quatro amigos, depois disto, viveram em perfeita harmonia durante muito tempo e passaram a vida juntos muito agradavelmente. Mas um dia,encontrando-se a tartaruga, o rato, e o corvo, como de costume, ao pé da água, deram pela ausência da cabrinha, o que muito os perturbou, visto que não podiam imaginar o que lhe teria acontecido. Dentro em pouco tempo resolveram procurá-la e prestar-lhe auxílio: imediatamente o corvo subiu ao ar e, olhando em torno de si, viu por fim, à distância, a pobre cabrinha presa na rede de um caçador. O corvo desceu logo, e comunicou o que tinha visto ao rato e à tartaruga; e bem se pode imaginar a angustia em que ficaram os três amigos. 
                 - Ha muito tempo que somos amigos e temos vivido felizes com a nossa amizade, disse a tartaruga; e seria vergonhoso agora faltar a ela e deixar perecer a nossa inocente e bondosa amiga; não, temos de achar uma maneira de livrar a pobre cabrinha.
                - Então, disse o corvo ao rato, lembra-te agora, excelente Zirac, da tua habilidade, e usa-a para o bem comum; não há senão tu para poder soltar a nossa amiga, e tem de ser depressa, antes que o caçador lhe ponha as mãos em cima. 
                  - Não duvides, da minha boa vontade, respondeu o rato, vamos pois, imediatamente, para que não se perca tempo. 
                  O corvo então levou Zirac no bico até o lugar onde estava a cabrinha, e uma vez ali chegado, pôs-se logo o rato a roer as malhas que prendiam os pés dela, e tinha quase acabado quando apareceu a tartaruga. A cabrinha, viu a sua vagarosa amiga, exclamou:
                 - Porque te arriscaste a vir até aqui? 
                 - É que, respondeu a tartaruga, já não podia suportar a vossa ausência. 
                 - Cara amiga, disse a cabrinha, a tua vinda aqui preocupa-me mais do que a perda da minha própria liberdade; pois se por acaso o caçador aparecer agora, que farás para lhe escapar? Por mim, estou quase solta, e a minha velocidade evitará que eu lhe caia nas mãos; o corvo está seguro ´porque voa; o rato esconde-se em qualquer buraco; só tu, que és vagarosa, serás decerto apanhada pelo caçador. 
                 Mal tinha a cabrinha dito estas palavras, apareceu o caçador, mas a cabrinha que já estava solta, fugiu; o corvo levantou voo; o rato escondeu-se num buraco; e, como dissera a cabrinha, só a tartaruga vagarosa ficou sem poder escapar. 
                 Quando o caçador chegou, não foi pequena a surpresa quando viu a rede toda cortada. Isto foi para ele, não pequena arrelia, e ficou procurando descobrir cuidadosamente quem tinha feito aquilo; e infelizmente, na sua pesquisa encontrou a tartaruga. 
                 - Ora, ainda bem!, disse ele, muito estimo encontrá-la aqui; até que enfim já não volto para casa com as mãos a abanar; esta tartaruga sempre vale alguma coisa. 
                  Dito isto, pegou a tartaruga, meteu-a dentro de um saco e o pôs no ombro, e tomou o caminho da casa. 
                   Quando se afastou, os três amigos saíram cada um de seu esconderijo, e encontrando-se, deram pela falta da tartaruga, não lhes sendo difícil imaginar o que lhe tinha acontecido. Então lamentaram-se profundamente, com mil lágrimas e suspiros. Por fim o corvo, interrompendo esta lamentação, disse: 
                - Caros amigos, os nossos suspiros e tristezas de nada servem à tartaruga; devemos, em vez de nos lamentarmos, ver se conseguimos encontrar um meio de lhe salvar a vida. Os sábios da antiguidade diziam que há quatro espécies de gente que só se conhecem nas ocasiões próprias:  Os homens valentes no combate; os homens honestos no negócio; uma esposa nos infortúnios do esposo; e um verdadeiro amigo na necessidade extrema. Vemos, infelizmente, a nossa amiga tartaruga numa situação muito difícil, e por isso devemos, sendo possível, socorrê-la
                   - Bom conselho!, respondeu o rato, e agora que penso no caso, vem-me uma ideia. É mostra-se a cabrinha à vista do caçador, que então, como é de esperar, porá o saco no chão para poder perseguir. 
               - Muito bem pensado!, respondeu a cabrinha. Eu finjo-me coxear a pequena distância dele, o que o levará a seguir-me, e depois tratarei de fazer com que ele se afaste do saco, para dar tempo ao rato de por nossa amiga em liberdade. 
                   Este plano apresentava-se tão bom que todos os aprovaram; e imediatamente a cabrinha começo a coxear a pequena distância do caçador, e a fazer-se tão fraca que ele julgou ser muito fácil apanhá-la; por isso, pondo o saco no chão, começou a correr atrás dela o mais que podia. A cabrinha deixava-o aproximar-se de vez em quando para incentivá-lo a segui-la, e depois tornava a afastar-se, até que, dentro em pouco o tinha levado para muito longe; e então o rato veio roer a corda que atava o saco e soltou a tartaruga, que imediatamente foi se esconder numa matagal muito denso. 
            Por fim o caçador, cansado de perseguir inutilmente a cabrinha, desistiu e voltou para onde deixara o saco. 
                 - Aqui ao menos, disse ele, tenho eu alguma coisa de seguro, esta não é tão veloz como o demônio da cabrinha; e, ainda que fosse, está muito segura para que as pernas possam lhe servir para fugir. 
                  Dizendo isto, dirigiu-se para o saco, e dando pela falta da tartaruga, ficou assombrado e julgou-se numa região espíritos e duendes que protegiam aqueles animais. Portanto, não podia ele ficar pasmado que uma cabrinha tivesse fugido da rede daquela maneira, e depois o provocando aos pulos; e de que, no entretanto, uma tartaruga, um pobre bicho indefeso, se lembrasse de arrebentar a corda dum saco e fugir. Com essas considerações o caçador entrou em pânico de tanto medo do que poderia lhe acontecer e fugiu correndo para casa, como se mil fantasmas e espantalhos o perseguissem.
                        Então os quatro amigos encontraram-se novamente, e desta vez muito felizes por estarem finalmente salvos; renovaram os antigos protestos de amizade, e juraram ficar juntos até à morte.